Atualmente, em quase todas as rodinhas de amigas, uma hora o assunto gira em torno da Trilogia de livros “Cinquenta Tons de Cinza”.
Para os que ainda não conhecem (porque é raro encontrar “as” que ainda não conhecem), o livro trata da história do amor complicado de Anastasia Steele, uma jovem de 21 anos recém saída da faculdade de Literatura, e Christian Grey, um jovem empresário que ostenta tanta perturbação psicológica quando dinheiro no bolso.
Tentar associar o tema dos livros “Cinquenta Tons” com o assunto da Alienação Parental, à primeira vista, parece completamente descabido. Afinal, o grande chamativo dos livros é o conteúdo sensual do relacionamento entre o jovem casal.
Eu, entretanto, não consigo deixar de achar que essa história, na verdade, não tem como pano de fundo o sadomasoquismo, mas o real ponto central da história é o efeito destruidor de uma infância roubada.
O protagonista, Mr. Grey, tem claros problemas de relacionamento, sendo-lhe difícil manter uma relação saudável, com manifestações espontâneas de afeto por meio de toques e palavras, possuindo uma compulsão por infligir certos graus de dor em busca da satisfação pessoal e sentindo uma extrema necessidade de estar no controle de tudo e de todos.
À medida que a narrativa se desenvolve, descobrimos no livro que o enigmático Mr. Grey sofreu violência física e psicológica na infância, que lhe deixaram marcas de queimaduras no tórax e sérios transtornos de relacionamento e personalidade – tanto o é que um dos personagens de apoio do livro é o seu psiquiatra, Dr. Flyn.
Agora vou me socorrer de Foucault para esclarecer que existe uma profunda ligação entre a Trilogia e o tema da Alienação Parental. Para Foucault, todos os enunciados – como função de existência dos signos – se inter-relacionam em campos enunciativos que complementam seus significados e significantes, criam um campo de conhecimentos históricos e sociais que permite a construção do discurso de acordo com um referencial, uma posição de sujeito e uma materialidade.
A lei da raridade foucaultiana é a pedra de toque que consegue identificar, entre tantos enunciados apropriados por cada indivíduo em seu arquivo, pontos de conexão entre enunciados que pareciam ser completamente díspares, mas que, após a adoção de um referencial, comunicam-se de alguma forma.
É certo que Mr. Grey não foi vítima de alienação parental. Esta síndrome importa no conflito de lealdade a que é exposto um filho quando seus pais (estando juntos ou em virtude de uma separação) começam uma briga para “ganhar” o amor e a dedicação do filho, impedindo o outro genitor de exercer sua parentalidade.
É a situação de um pai que, motivado por ciúmes ou frustrado pela separação, inicia uma campanha de difamação contra a mãe do seu filho, fazendo com que a criança a rejeite e “escolha” amar somente o pai, para não “piorar” o sofrimento que ela vislumbra neste.
É a situação de uma mãe que, para obter uma pensão mais polpuda, desestabiliza a convivência do pai com o filho, dificultando as visitas, incutindo na criança sentimentos de medo, raiva, abandono, fazendo com que a criança se alinhe excessivamente à mãe e dissipe o natural desejo de conviver com o outro genitor.
É a situação de um avô que, não concordando com a orientação sexual externada pelo antigo genro, após a separação conjugal, busca desqualificá-lo enquanto pai, inclusive com falsas denúncias de abuso sexual.
Na prática, várias são as situações que podem configurar um ato de alienação parental, que, em termos simples, significa a manipulação dos sentimentos e pensamentos de um menor para que rejeite o outro genitor ou outro membro da família.
Apesar de não ter sofrido alienação parental, Mr. Grey sofreu um grande trauma em sua infância, que inclusive lhe deixou sem conseguir se comunicar verbalmente com outra pessoa durante 2 anos. Adolescente, Mr. Grey enfrentou as agruras do desenvolvimento de uma personalidade agressiva e, quando jovem, remanejou a agressividade mal-resolvida para a prática de atividades sexuais que a maioria de nós considera deturpadas, por envolver violência, arbitrariedade e dor.
A pergunta que não quer calar é: qual a lei de raridade que aproxima o discurso de Mr. Grey do de tantas vítimas de alienação parental? E eu respondo: é o enunciado de uma infância roubada, com todos os seus contextos e interfaces de integridade psíquica, desenvolvimento afetivo, equilíbrio emocional, reprodução de comportamentos desviados, entre outros.
Assim como Mr. Grey apresenta, na idade adulta, transtornos de ordem psicológica que lhe dificultam viver a plenitude de um relacionamento sem manifestações de autoridade e imposição de dor, várias vítimas de alienação parental, quando crescem, passam a conviver com complexos de culpa, transtornos psíquicos pela falta de referência do Outro (pois a identidade da criança é construída pela contraposição dos papéis do pai e da mãe), gerando assim um adulto que sofre de ansiedade, distúrbios de comportamento, déficits de afetividade, entre outros problemas.
Mr. Grey apresenta marcas no corpo que sensibilizam os leitores pela violência que ele sofreu, mas geralmente as vítimas de alienação parental carregam suas marcas somente no seu interior, já que a alienação é uma forma de violência simbólica, que não deixa rastros físicos evidentes.
Nessa relação entre Cinquenta Tons de Cinza e Alienação Parental, o que espero é sensibilizar as mesmas pessoas que se condoem com a história de vida do Mr. Grey para o necessário equilíbrio que todo filho merece ter em seu lar, sob pena de prejudicar seu futuro enquanto pessoa que precisará se relacionar com outras pessoas além dos genitores, em prol da sua plenitude existencial.
Busco, com essa relação, abrir os olhos de pais e mães que pensam não estarem prejudicando a integridade psicológica de seus filhos quando os expõem aos conflitos conjugais.
Acreditem que, assim como o Mr. Grey, esse menor carregará as cicatrizes da violência simbólica enquanto viver, porém nem todos terão a grande sorte de disporem, assim como o personagem, de uma vasta fortuna para escaparem da confrontação dos seus vícios.
Fica, assim, um apelo para que todos os familiares, e não apenas os genitores, tenham a serenidade necessária para resguardar a criança e o adolescente das brigas domésticas, não lhes exigindo a “escolha de um lado” ou os votos de “dedicação exclusiva”, pois a formação de cidadãos maduros e responsáveis perpassa necessariamente pelo desenvolvimento de jovens equilibrados.
Postagem autorizada pela autora.
* Bruna Barbieri Waquim é mestranda em Direito e Instituições do Sistema da Justiça – UFMA e servidora pública do TJMA (bu_barbieri@yahoo.com.br)